11 de julho de 2014

Sobre a insaciabilidade de contínuos e feridas



Toda vez que aqueles calafrios começam a correr pelo pulso lembro da primeira vez que senti vontade de escrever. Vontade não, desespero. Devia ter uns onze, doze anos, e, se pudesse encontrar o que escrevi, seria o original do que escrevo agora – do que venho repetindo todos os anos desde então. É como se todas as vezes revisitasse aquele meio-dia daquele sábado daquele dois mil e pouca coisa: a cadeira de balanço em frente ao portão de casa, o vento quente, os olhos embaçados, o caderninho velho.

Ainda não aprendi outro símbolo. Ainda continuo tentando fazer com que tudo escorra pelos dedos. Sempre tem alguém que me pergunta se não tenho vergonha de me expor assim. Não, nunca deu medo (porque vergonha é medo desnutrido). Isso é nudez pra dentro - ou talvez eu goste mesmo de me sentir ridícula. Melhor: gosto de tudo que me faz sentir. Ponto. Novidade nenhuma aqui.

Tenho um amigo que sempre me diz que não quer me ver chorar. Não entende. Não consigo fazê-lo entender que durmo, falo besteira, sinto fome, fico doente, escrevo, choro. Tudo normal, tudo parte de estar viva. Tudo parte minha. Me vem com “aproveitar a vida”, no tom de um desses discursos que significam beber e trepar e rir e cantar mas minha tradução disso, desde sempre, inclui permitir que, a qualquer momento, meu teto desabe sobre as minhas certezas. Aproveitar a vida pra mim tem também a ver com reconstruir e sangrar e questionar e deixar as vísceras enforcarem o cérebro, colecionar primeiras vezes. E aí escrever pra pedir arrego.

Hiatos à parte, pretendo continuar transformando sensações em parágrafos. Lacunar e incompleta, continuarei escrevendo pelo devaneio de que a palavra me salve. Ou liberte.

19 de janeiro de 2012

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Quando quero escrever e as palavras ficam presas no nó da garganta, esse é o sinal. É assim que eu sei, é quando se torna inegável. É quando olho pra dentro e vejo a velha luta: lá vêm as vísceras querendo enforcar o cérebro.  O problema não é decidir o que quero. O problema é que o que cada parte de mim quer coincida. O problema é ter que se apoiar num passado podre. E passado não é só anos atrás, passado também é semana passada. E estava tudo tão bem... sabe? Aquele bem exagerado que é prenuncio de que o que dói estava por vir. Ou ressurgir. “São tempos modernos, isso é normal”. Mentira. Faço parecer fácil, mas não é. Reciprocidade, nesses tempos modernos, é luxo. Grito e choro e esperneio e digo que não mereço. Bom seria se viver tivesse algo a ver com merecimento. Bom seria se as pessoas tivessem pra dar o mesmo que nós. Fidelidade de intenção. Fidelidade de quando não tem ninguém olhando. Não sai da cabeça, não sai do pulso, não sai do peito, não sai da lágrima que se esconde na água que vem do chuveiro. É pra fingir que não viu. É pra fazer de conta que é normal. Então temos um problema de afinidade, porque normal eu não sou.

6 de novembro de 2011

A conversa com o tempo ou O enlouquecido e eles

Ouvi falar muitas vezes que você cura tudo, mas nós dois sabemos que isso não é verdade. Sabemos que o que você faz é colocar fim nos caprichos da vida. Sei que ela eu posso levar pra qualquer direção, ela provavelmente vai aprontar no caminho, talvez até mande alguém pra me bater muito, mas ela continua presa a mim, indo por onde eu for. Ela é minha. Mas você, ah, você não. Vai andar conosco, pra onde nós formos. Não vai mexer comigo, sabemos. Mas em você eu não mando. É um triângulo maldito: ela está presa a mim, você está preso à ela, e eu, bom, nós sabemos. Você fica daí, me encarando.

Quando eu era criança te via grande, do tamanho dos meus sonhos. E não me incomodava contigo, estavas em algum lugar onde eu chegaria um dia, e aí sim. Aí eu te teria inteiro ao meu lado enquanto eu fosse grande e feliz. Te vi me olhar muitas vezes desde então. Você me encarava nos calendários, nas construções tentando chegar ao céu que cresciam ao lado da minha casa, no pé de jabuticaba que eu plantei, no meu corpo, no meu reflexo, nas cores do céu, nas eleições para a presidência, nós verões que eu passava na praia.

Você é cruel? Você é implacável? Quem te deu esses adjetivos? Pois num dos caminhos conversei com a vida, e ela me disse que me preocupar com você era a maneira mais eficiente de desperdiçá-lo. Mas também me disse que deixar de preocupar e ignorar são coisas diferentes, e que eu corria bem mais perigo com o último do que com a preocupação. Aceitei então.

A cada natal falamos de você, sabe. É como um ritual falar que você passou correndo. Nessa hora você deve rir, aposto. Você estava ali, da mesma maneira de sempre, nós é que desviamos o olhar. Cada um de vocês encarando um de nós (porque adivinhei que você é um pra mim, um pro outro, outro pra uns. Vocês acompanham a velocidade com que cada um caminha com sua respectiva vida). Me formei no colégio, na faculdade, vivi só, vivi junto, voltei a viver só. Você nunca tirou seus olhos de mim.

Você é cruel. Você é implacável. A vida, tão doce, me deu uma visão de você quando era novo. Hoje eu vejo que não, não é isso. Se não fosse por você, ela e eu seríamos felizes! Você só tem tentado me afastar dela. Pobrezinha, minha vida não pode correr mais solta. Ela me confessou que a culpa é sua. Vi o menino na rua, não pense que você me enganou. Eu vi, eu vi nos olhos, era você. Pequeno, frágil, indefeso. Coisa nenhuma, estava era disfarçando o monstro que você é. Pare de tentar se diminuir aos meus olhos, volte a ser grande como quando eu era menino. Desgraçado, solta a minha vida! me solta! Olha só o que você fez comigo. Não! não me olhe mais, não me olhe.

Pois se eu não posso me livrar de você, me livro dela.


(e puxou o gatilho, esquecendo-se que jamais a conheceria sem ele).

Querida postagem clichê

Alguém tem proibir comédias românticas pra menores de boda de prata. Alguém tem que avisar que não se deve acreditar em tudo que se vê na tv, muito menos em tudo que se lê nos livros. Alguém tem que começar a dar aulas de filosofia, psicologia, sociologia e literatura sob a sombra de uma árvore qualquer, sem papéis ou canetas ou provas ou livros. Alguém tem que implorar aos pais pra não brigarem quando seus filhos cavarem um buraco no jardim em busca da China. Alguém tem que passar a música clássica do ônibus pros fones de ouvido. Alguém tem que passar adiante uma geografia menos bairrista. Alguém tem que avisar que ser voluntário não te absolve do seu egocentrismo. Alguém tem que gritar pra certas pessoas parem de usar o nome de deus pra assinar seu atestado de estupidez. Alguém tem que contar que um olhar não vale mil palavras e diálogo é nescessário. Alguém tem que deixar jornalistas de fofoca morerem de fome. Alguém tem que explicar que toda alegria tem uma semente de sofrimento. Alguém tem que avisar que mudar de caminho não é vergonha: seguir no errado é. Alguém tem deixar claro pras poucas pessoas que se importam em votar que não adianta pesquisar seu candidato de trás pra frente, por melhor que ele seja as mudanças não vem de cima. Alguém tem que deixar cozinheiros picarem seus legumes com a faca na direção que eles quiserem, com a faca que quiserem. Alguém tem que dizer que se você é inseguro, insatisfeito, indeciso e curioso, parabéns. Alguém tem que dizer que certos clichês estão certos, certas teorias estão erradas, mas todos tem que testá-las. Alguém tem que dar um soco bem dado na Sonia Abrão.

Alguém, por favor, aceite esse trabalho.

12 de agosto de 2011

Sobre nós, pequenas...

Na porta entreaberta da loja de brinquedos, no segundo piso do Pátio Brasil, num domingo:

- Mãe, veeeem, quero entrar!
- Tá fechado ainda.
- Pra você, mas eu caibo.

Me arrependo, mas te juro



Não me venha com meias palavras com esse seu sorriso que não sei lidar com isso. Ficou tudo claro, eu sei. Era noite, era o vento do cerrado carregado de poeira, era o mármore sujo e portanto, eu sei. Fiquei sabendo. Duvidei como se fosse cruel demais pra aceitar, mas doce demais pra engolir. Descobrimos - não que já não soubéssemos no singular - que estávamos podres. Tínhamos passado do ponto. Éramos colheita fácil mas não estendemos a mão.

A mão que sabia abrir soutiens com a mesma leveza com a qual os colocava de volta, dando um beijo no fecho como se seus lábios fossem o cadeado.

Os números continuam na minha agenda, cada segundo continua na memória, cada almoço continua, cada caminhada continua, cada conversa, cada... Continua. Estão aqui. Mas você está mil e trezentos e tantos quilometros de nós. Ou eu estou, talvez. Com suas desculpas de jardim de infancia e seu uísque caro, me ligando e me fazendo sorrir, apesar da raiva. Isso realmente acontece? passar o momento? E se cada um tem seu momento, qual a chance de acertar o momento dos dois? Saber que um 'pra sempre' estava tão perto quanto a próxima, mas que viramos as costas pra continuar passando fome.

E como tive fome. Quantas vezes coloquei pedras de gelo na boca pra enganar o estômago, e tudo isso pra que? Pra ter mais alguns segundos de você. Eu te disse, eu disse que você era minha medida de tempo, que eu deixava tudo mais passar como num borrão pra viver da esperança de ter você mais uma vez. Eu disse antes de você desligar que eu não tinha muito, que eu não sou muito, mas tudo que tenho é seu. Convivi com o silêncio, com a vontade, com o sussurro. Me declarei como se fosse numa prece... Mas você avisou, quando a gente abre o que sente as chances são metade pra cada lado. E já tinham passado meses do nosso ponto, você já estendia os braços pro outro lado. Eu te culpei por me deixar apodrecer no chão, você me culpou por ter escondido a verdade (aquela que pra mim era tão óbvia).

E cadê você? Você prometeu, você prometeu, você prometeu. Com a boca na minha lágrima, você prometeu. É isso que você chama de mentira adulta? Por caridade, enfie sua sensatez no cu. Queria terminar mais essa carta com um eu te amo. Mas não. E deixa a vida ser. Quem sabe a semente brote.

7 de julho de 2011

"Os homens devem ter um sindicato. Eles decoram o texto, recitam com a mão no peito e ganham uma carteirinha secreta. No livro de regras deve ter coisas como “nunca fique com uma mulher que possa quebrar seu frágil coração maricas”, “observe a reação dos ex-namorados e ex-casos dela. Se forem todos ressentidos, dê no pé imediatamente” e “fuja de mulheres intensas, elas são todas malucas” (...) Não dá, não dá. Homem tem que ser homem e conseguir ser mais mulher que eu." - Clarah Averbuck

meu-mundo-real

Fui ali ganhar o mundo.
Descobri que eu o tinha o tempo todo.

Sobre descobertas, brigas e o átomo

Quando descobrir quem sou, terei mudado. Na verdade, estou sempre um passo atrás. É: só descubro o que fui. Me reinvento a cada espelho quebrado. Da cor das unhas à cor da alma, tem sido assim desde sempre. Talvez, e somente talvez, descobrir esse pavor de amadurecer tenha desprendido algumas amarras. Se bem que não, tsc tsc, não descobri sozinha. Foi uma das tramas do espelho (conhece a estória? a de que não é irônico que justo o nosso rosto, a primeira coisa que alguém olha em você, não seja visível aos seus olhos? Pra saber o que todos vêem em você é preciso o reflexo, um espelho. Quanto mais próxima a nós uma pessoa seja, mas nítida a imagem que ela te mostra).

Fato é que, olhando reflexos ou enfiando a mão num pote cheio de mim, um átomo de conhecimento chegou. Quem sabe esteja só de passagem, mas se estiver, é uma daquelas visitas inesperadas que chegam de madrugada e derrubam paredes. Tudo tem parecido tão otimista e desesperador... aliás, é bem possivel que o meu desespero divida o quarto com meu otimismo (tímido e bipolar, no meio das quatro luzes com fones de ouvido, sempre evitando as músicas altas que o desespero gosta de ouvir até tarde). No meu mundo real - aquele que não se vê - do lado de lá do ringue do otimismo certamente não está o pessimismo... não, o meu pessimismo é declarado, é implicante, gosta de provocar, de se mostrar. Derrotaria o otimismo por WO, quantas vezes fossem necessárias. Por isso o oponente (é, não o oposto, aqui é o mundo real: opostos não existem) é o desespero. Os dois ficam acordados até tarde, mas não importa o quanto o otimismo seja persistente, o desespero é melhor alimentado. Agora mesmo, os dois estão aqui no quarto principal. Talvez quando o átomo for embora, eles façam as pazes.

 E existe algo mais contrário à esperança do que o des-espero? Existe.